Como o ataque à estrutura financeira do crime organizado permitiu o fim da Cracolândia

Pela primeira vez em quase três décadas, a chamada “Cracolândia” — antes um dos símbolos mais representativos do crime, da degradação urbana e da vulnerabilidade social — deixou de existir como problema estrutural para o estado de São Paulo. Segundo as autoridades da segurança pública, o ponto de virada foi a mudança de abordagem: em vez de focar apenas na cena aberta de uso, o poder público passou a atacar a raiz do fluxo. Uma das principais estratégias adotadas foi desmontar a rede hoteleira e de ferros-velhos que serviam como centro logístico do tráfico e da lavagem de dinheiro.
O alinhamento estratégico permitiu que a Polícia Civil identificasse uma engrenagem criminosa bem mais complexa do que a simples venda e consumo de drogas. Dependentes químicos migravam constantemente entre bairros no centro da capital em busca de hotéis e pensões que funcionavam como depósitos de entorpecentes e locais de comercialização e uso.
Durante as investigações para entender os mecanismos do fluxo, os agentes descobriram que muitos estabelecimentos apresentavam movimentações financeiras incompatíveis com o serviço prestado e com o perfil dos frequentadores, acumulando faturamentos milionários. Na prática, além de sustentar o tráfico, a rede hoteleira operava como mecanismo de lavagem de dinheiro para o crime organizado.
“Pessoas do Brasil inteiro sabiam que, ao chegar em determinada região do centro de São Paulo, conseguiriam drogas e um lugar para dormir a um preço baixíssimo”, afirmou o delegado Ronaldo Sayeg, que dirigiu o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) por quase três anos. “Não parece hoje, mas era extremamente difícil entender como esse esquema se mantinha por tanto tempo porque só olhávamos, até então, para a parte feia e visível do problema.”
O combate ao ecossistema que mantinha o fluxo
Com o mapeamento da movimentação financeira concluído, a Polícia Civil pôde atacar diretamente o ecossistema que sustentava o fluxo de usuários. Sayeg, hoje diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), coordenou a Operação Downtown, iniciada em 2023 e que teve ao menos cinco fases. A mais robusta, em junho do ano passado, cumpriu 140 mandados de busca e apreensão, fechou judicialmente 28 hotéis, prendeu 15 suspeitos e bloqueou mais de R$ 200 milhões dos investigados.
Outra ação importante foi a Operação Salut Et Dignitas (Saúde e Dignidade), deflagrada pelas Polícias Civil, Militar e Ministério Público de São Paulo com apoio de outros órgãos governamentais. A ofensiva atingiu não apenas o tráfico, mas também a milícia instalada na região, envolvida em exploração sexual, ferros-velhos clandestinos, receptação e outros crimes que fomentavam o tráfico de drogas.
O secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, resume o efeito conjunto das ações como uma “asfixia financeira do ecossistema criminoso, cortando a rota da lavagem de dinheiro e atingindo toda a estrutura que sustentava a venda de drogas no centro da capital paulista.”
Integração entre segurança, saúde e assistência social foi decisiva
Por décadas, o fluxo no centro de São Paulo provocou desvalorização imobiliária e fuga de moradores e comerciantes devido à insegurança. O esvaziamento definitivo só foi possível graças à integração entre segurança pública, saúde e desenvolvimento social, num trabalho integrado entre estado e município.
Além das operações policiais, houve a qualificação de frequentadores das cenas abertas de uso, com inclusão em um banco de dados contendo informações pessoais, antecedentes e histórico de saúde — o que permitiu separar dependentes químicos de criminosos.
Policiais civis e militares receberam treinamento para orientar usuários que buscassem ajuda. Eles eram encaminhados ao Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, criado pelo Governo do Estado, que oferece atendimento psicossocial, acompanhamento médico e direcionamento a hospitais especializados. A Secretaria de Desenvolvimento Social ampliou a rede de acolhimento, oferecendo casas terapêuticas, acolhimento institucional, repúblicas terapêuticas e programas de apoio às famílias.
Somadas a comitês técnicos-científicos, grupos de trabalho, fóruns e demais frentes de atuação, essas iniciativas integradas resultaram no desmonte do ecossistema criminal e na desmobilização da Cracolândia após quase três décadas.

Com informações: SSP-SP



