Cultura

Falando de filmes e séries: O Poço e The English Game

por MARCOS KIMURA*

Poço sem fundo. Graças à querida amiga Maria Carolina Ferreira, me animei a assistir o filme da moda do confinamento, “O Poço”, e posso (perdoe-me, Jô Soares) dizer que ele cumpriu minhas baixas expectativas. Alguém já disse – ou escreveu – que ele é o filme certo no momento certo, mas eu diria que ele é o filme errado no momento certo. Obviamente, embora filmado em um contexto totalmente fora da nossa atual quarentena, seu lançamento oportuno pela Netflix fez muita gente trancafiada pela pandemia se identificar com a trama.

A trama gira em torno de uma instituição na qual as pessoas são instaladas, algumas por cometerem crimes, outras para terem uma certificação nunca muito explicada, composta por vários níveis ligados apenas por um poço. Uma plataforma leva comida do nível superior para os inferiores, e cada andar vai consumindo o que pode até sobrar nada ou quase nada para quem está mais embaixo.

O que à primeira vista parece uma metáfora social, logo descamba numa pornografia da violência ao estilo “Jogos Mortais”. Comparar com “Parasita”? Talvez com outra obra de Joon Bong Ho, “Expresso do Amanhã” (exibido no nosso Cineclube Indaiatuba), mas este com concepção e execução infinitamente superiores.

Na verdade, o que a princípio parece ser contestador em “O Poço” acaba se revelando reacionário, ainda mais com aquele misticismo cristão próprio da Espanha, com uma arquitetura fantástica que lembra, de certa forma, “O Ministério do Tempo”, série muito melhor que andou pelo catálogo da Globoplay. E pensar que a atriz Antonia San Juan, a burocrata que seleciona quem vai para o poço, foi a inesquecível Agrado de “Tudo sobre minha mãe” do Almodóvar.

O esporte bretão

Nos velhos tempos do rádio, alguns locutores costumavam se referir ao futebol como “esporte bretão”. Esta seria a tradução mais adequada para a minissérie “The English Game”, lançada recentemente pela Netflix. Dois de seus personagens principais – Fergus Sutter (Kevin Guthrie, de “Animais Fantásticos: O crimes de Grinenwald”) e Jimmy Love (James Hackness, de “As loucuras de Rose”, exibido no Cineclube Indaiatuba) – são escoceses, baseados em personagens reais, considerados os primeiros jogadores profissionais da Football Association (a Associação de Futebol da Inglaterra, que estabeleceu as regras do esporte em 1861), ou seja, do mundo. A contraparte desses dois operários é o aristocrata, este sim inglês, Arthur Kinnaird (Edward Holcroft, dos filmes “Kingsman”), outro personagem histórico, craque do Old Etonians e, posteriormente, presidente da F.A..

Quando a série começa, Sutter e Love estão se mudando para Darwen (no condado de Lancashire, no norte industrial da Inglaterra), contratados pelo dono da fábrica que sustenta o time local. Ambos logo enfrentam o Old Etonians numa partida épica, em que os ex-alunos do elitista colégio Eton saem vencendo por 5 a 0 e os trabalhadores liderados por Sutter conseguem empatar no final. Numa era pré-passe, Sutter é seduzido pela proposta de outro time operário, o Blackburn (o mesmo que até hoje joga a Premier League), e se transfere para lá.

O filme retrata um momento crucial do futebol, quando o profissionalismo, que permitirá uma democratização do esporte, se impõe ao amadorismo elitista, já que os bem nutridos aristocratas com tempo livre desfrutavam de enorme vantagem sobre os operários, com suas longas jornadas de trabalho habilmente descritas por Karl Marx em “O Capital”. Também tem como pano de fundo a sociedade vitoriana, que oprimia mulheres de todas as classes, sobretudo as pobres.

O dilema amadorismo x profissionalismo se repetiria no Brasil somente meio século mais tarde, mas as bases eram mais ou menos as mesmas, aqui com o acréscimo do racismo. Se não chega a ser brilhante, e como quase todas as produções audiovisuais fictícias sobre o tema, com partidas muito longe de recriarem o que é o futebol, “The English Game” tenta ser honesto quanto as origens da paixão do esporte mais popular do planeta, algo até há pouco incompreensível para os pragmáticos norte-americanos.

*Marcos Kimura é jornalista e curador do Cineclube Indaiatuba (SP).

fotos: reprodução