Paciente com doença rara se cura da Covid-19 após 4 meses ao ingerir leite materno de doadora vacinada
Uma paciente com uma doença genética rara que afeta a imunidade deixou de testar positivo para Covid-19 após quatro meses por meio de um tratamento com leite materno de uma mulher que havia se vacinado contra o novo coronavírus.
O caso, orientado e acompanhado pela pediatra e professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp Maria Marluce dos Santos Vilela, foi tema de um artigo científico publicado na revista Viruses em maio deste ano.
Vilela afirmou que a experiência aponta uma direção de tratamento de Covid-19 prolongada. “Há necessidade de pesquisas nesse sentido, selecionar pacientes que possam ser favorecidos com esta intervenção terapêutica”.
A paciente, que não teve a idade divulgada por sigilo da pesquisa, é portadora da síndrome de imunodesregulação, doença que causa a redução das taxas de parte dos anticorpos produzidos pelos organismos humanos.
Segundo a professora, um desses anticorpos é a imunoglobulina IgA, presente no leite materno e que é responsável pela neutralização de vírus e outros agentes causadores de doenças.
A doença também reduz a produção do anticorpo IgG, presente no sangue e responsável por neutralizar antígenos com os quais o organismo já teve contato. Vilela aponta que há registro de outros 157 casos da síndrome de imunodesregulação no mundo.
A paciente testou positivo para Covid-19 em março de 2021, quando teve febre, perda de apetite, de peso e tosse. Vilela, que a acompanha desde a infância, indicou que ela deveria ficar em isolamento em casa, já que no hospital poderia contrair infecção bacteriana.
A médica afirma que ficou apreensiva com o quadro. “O erro inato da imunidade que ela apresenta deixa seu sistema de defesa todo desregulado. Sua resposta inflamatória é deficitária, há poucas células se mobilizando para o local da inflamação e baixa produção de anticorpos”, disse, em entrevista à Agência Fapesp.
“As características de virulência dos agentes infeciosos podem levar a dois desfechos nesses casos: infecção crônica ou morte”, completou.
Tratamento com plasma de sangue
Apesar dos sintomas duradouros, a paciente não teve complicações no pulmão e em outros sistemas do organismo.
No entanto, continuava com sintomas após dois meses da infecção, o que fez com que o grupo que a acompanha resolvesse testar um tratamento com transfusão sanguínea de anticorpos produzidos por pessoas que haviam se curado da Covid-19.
O procedimento, feito em parceria com o Hemocentro da Unicamp, gerou a redução dos sintomas e da inflamação sanguínea, mas a paciente continuava a testar positivo para Covid-19 no exame RT-PCR.
Além dos sintomas leves, ela apresentava sinais de adinamia, uma fraqueza muscular associada a processos infecciosos prolongados. Mesmo 15 dias depois do tratamento com plasma sanguíneo, a situação permanecia.
Leite materno
A ideia do tratamento com leite materno ocorreu após a divulgação de resultados de um estudo que apontou que mulheres lactantes imunizadas com a vacina da Pfizer produziam leite com uma quantidade razoável de anticorpo.
“Decidimos então fazer a experiência assistencial de reposição de IgA via leite materno”, explicou, à Agência Fapesp, a pediatra.
A paciente ingeriu, durante uma semana, 30 milímetros de leite materno a cada três horas. O leite foi doado por uma mulher vacinada contra Covid-19. O intervalo de três horas foi pensado para evitar que o vírus se replicasse.
“Recomendamos a ela o consumo do leite por via oral, pois o IgA funciona como uma ‘vassoura’, ou seja, vai grudando nos patógenos ao longo de todo o trato gastrointestinal e tudo que é impróprio é eliminado nas fezes”, afirmou a pediatra.
Após uma semana, a paciente apresentou resultado negativo do teste de RT-PCR. Ela havia testado positivo por 124 dias, segundo a Agência Fapesp. O teste foi repetido duas vezes, com intervalo de dez dias entre eles, e ambos seguiram negativo.
A médica explicou que a paciente segue realizando testes de Covid-19 como monitoramento. Além disso, explicou que o tratamento com leite materno foi feito antes mesmo da paciente se vacinar, porque as pesquisas que indicaram o imunizante da Pfizer para imunodeficientes tiveram resultados a partir do segundo semestre de 2021.
Os pesquisadores da Unicamp sequenciaram o genoma do vírus três amostras coletadas em diferentes momentos na paciente. Isso para confirmar que ela estava infectada com o mesmo patógeno, e não que foi contaminada mais de uma vez.
Vista aérea do campus de Campinas da Unicamp — Foto: Antoninho Perri/ Ascom/ Unicamp
Infectada pela variante gama
O trabalho de sequenciamento, coordenado pelo professor José Luiz Proença Módena, do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) da Unicamp, mostrou que a paciente foi infectada pela variante gama, encontrada pela primeira vez em Manaus no final de 2020.
“Além disso, os dados mostraram que a paciente foi cronicamente infectada por esse mesmo vírus e não sucessivamente infectada por vírus diferentes, já que nenhuma mutação no genoma viral foi encontrada nas três reações de sequenciamento realizadas com amostras da paciente coletada em momentos diferentes”, afirmou Módena, à Agência Fapesp.
‘Mães vacinadas prestam grande serviço’
A professora da FMC afirma que tem como linha de pesquisa as doenças genéticas que causam imunodeficiência. “Ou seja, doenças causadas por erros inatos da imunidade”.
Segundo ela, as estimativas de frequência destas doenças, consideradas raras, indicam que pode haver cerca de 160 mil indivíduos com imunodeficiência genética no Brasil.
Ao analisar o caso da paciente, a professora enalteceu a vacinação contra Covid. “Eu destacaria que as mães vacinadas para Covid-19 e que amamentam seus filhos estão prestando um grande serviço de prevenção contra Covid, além de proteger seus bebês contra várias infecções virais”.
“Quanto aos imunodeficientes, que são altamente suscetíveis às infecções, um tratamento de reposição de anticorpos que eles não produzem seguramente são de grande benefício”, finalizou Vilela.