por MARCOS KIMURA*
A Netflix estreou nesta semana a minissérie (série?) “Freud”, uma coprodução austro-alemã, que é uma fantasia sobre um jovem Sigmund Freud envolvido numa série de crimes em Viena, em 1886. Interpretado pelo também austríaco Robert Finster, o protagonista está às voltas com uma apresentação acadêmica sobre hipnose quando é chamado pela inspetor de polícia Kiss (Georg Friedrich) e o gendarme Poschacher para atender uma jovem brutalmente esfaqueada e agonizante. Ela acaba falecendo no consultório/apartamento do médico, mas uma pista leva Kiss a um velho inimigo, o oficial hussardo Georg von Lichtenberg, que além de tudo é filho de um importante general.
A ligação inicial entre Freud e Kiss os leva a investigar uma série de crimes que se sucedem, todos envolvendo figuras proeminentes da sociedade. O médico acaba descobrindo uma ligação entre os crimes e motivações ocultas no inconsciente. Cada episódio tem o nome de um conceito psicanalítico. Para quem só conhece o pai da Psicanálise superficialmente, é uma diversão instigante, que envolve sexo (naturalmente), mistério, violência, e história em cenários reais. Para quem conhece mais, é bem mais interessante.
O roteiro é historicamente bastante acurado, com o protagonista envolvido nas pesquisas de hipnose, que ele acreditava ser o caminho curar neuroses, especialmente a histeria, uma verdadeira epidemia na Europa vitoriana. Ele também pesquisava os efeitos medicinais de uma droga recém- desenvolvida por laboratórios alemães, a cocaína, e acabou se viciando antes de descobrir que a coisa não era tão legal assim. Tudo isso está nos livros e na série.
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Também é interessante como os personagens reais da vida de Freud são parecidos com as imagens conhecidas pelas fotos em suas biografias, assim como as relações entre eles e o protagonista. Um acréscimo curioso é a amizade de Freud com Arthur Schnitzler, famosos escritor que, como ele, era médico, jovem, interessado em hipnose e também trabalhou com o respeitado neurologista Theodor Meynert, nêmesis de Sigmund, que se recusava a ver na histeria mais que fingimento das pacientes. Possivelmente os dois contemporâneos não se conheceram na juventude como aparece na série, mas a Viena devassa e hedonista é referência à obra literária de Schnitzler, cujo romance “Breve romance de sonho” é a base para o último filme de Stanley Kubrick, “De olhos bem fechados”.
Um último fan service para iniciados é o envolvimento de Freud com a bela médium húngara interpretada pela francesa Ella Rumpf, vista em “Mulheres Divinas” no Cineclube Indaiatuba. Nem tanto pela personagem em si, elemento mais fantástico da série, mas pelo nome, Floeur Salomé. Como se sabe Lou Andreas-Salomé foi uma das pacientes mais famosas de Freud, tornando-se sua amiga e aluna. Bela, inteligente e adepta do amor livre, enfeitiçou entre outros Friederich Nietzsche e Rainer Maria Rilke.
O excesso de fantasia – num nível quase de história em quadrinhos, como está na moda – prejudica quem está mais ligado em história e em psicanálise, assim como a evidente falta de verba, especialmente no baile imperial que é o clímax da narrativa (quem viu qualquer filme da série Sissi tem uma ideia muito mais próxima da pompa e circunstância da corte de Francisco José, o último imperador). Ainda assim, recomendo como um entretenimento divertido e educativo, para quem se interessa pelo assunto.
Filme de guerra
Escondido no cardápio da Netflix está um clássico de 40 anos, “Agonia e Glória”, título meio idiota para “The Big Red One”, de Samuel Fuller, que se referia à 1ª Divisão de Infantaria do Exército Americano, a mais antiga das Forças Armadas, cuja divisa, um número um vermelho, tem a origem explicada no prólogo que acontece ainda na I Guerra Mundial. Fuller é um daqueles diretores B redescoberto pelos franceses do Cahiers de Cinènma, e esta obra semiautobiográfica está nas listas “1001 filmes para ver antes e morrer”, de Steven Schneider; “Great Novies”, de Roger Ebert, e inspirou o game “Call of Duty 2: The Big Red One”, em 2005. É o único filme importante de Mark Hamill fora da franquia “Star Wars”.
Fuller escreveu o roteiro baseado em suas experiências durante a II Guerra Mundial, e o personagem Zab (vivido por Robert Carradine, de “A Vingança dos Nerds’) é inspirado nele mesmo. Mas o fio condutor da história é o sargento durão e sem nome vivido pelo lendário Lee Marvin (líder dos “Doze Condenados”, que inspirou “Bastardos Inglórios”). Ambos, mais Griff (Hamill), Vinci (Bobby Di Cicco, de “1941: uma guerra muito louca”) e Johnson (Kelly Wad, de “Grease”) são os únicos do pelotão que participam de todas operações da unidade, das invasões da África no Norte, Sicília, Dia D, a contraofensiva da Ardennes e a libertação de um campo de extermínio na Tchecoslováquia.
Marvin, como Fuller, também lutou na guerra, só que no Pacífico, mas levou ao set muitas de suas próprias experiências, sem falar que o papel está na medida para sua persona cinematográfica, ainda que a ideia original do diretor-roteirista era ter John Wayne no projeto (isso nos anos 50). Como ele levou mais vinte anos para concretizar o projeto, teve que se virar com o que tinha, então Israel serviu de cenário para o Marrocos Francês, a Sicília Italiana, a Bélgica e a Tchecoslováquia, culminando com a ironia de fazer figurantes judeus interpretarem nazistas da SS. Mas como os soldados americanos lutavam, da forma de carregar os fuzis à distribuição das tropas em patrulha, tudo foi recriado com fidelidade por Fuller.
O resultado é um filme de guerra emocionante, ainda que antiquado em alguns elementos, como a trilha sonora óbvia. Mas a camaradagem entre o pelotão, as reações diante da morte e dos perigos em combate são muito mais convincentes que, por exemplo, o pirotécnico e vazio “1917” de Sam Mendes, que num ano menos competitivo talvez levasse o Oscar (obrigado, Joon Bong Ho!).
*Marcos Kimura é jornalista e curador do Cineclube Indaiatuba (SP).
foto: divulgação